quarta-feira, 24 de agosto de 2011

TEXTO DE APROFUNDAMENTO - 02

TEXTO DE APROFUNDAMENTO - 02


MARIA AMÉLlA SANTORO FRANCO
SELMA GARRIDO PIMENTA
[ORGANIZADORASj

DIDATICA

EMBATES CONTEMPORÂNEOS


O campo teórico e profissional da Didática hoje: entre Ítaca e o canto das sereias'

José Carlos LIbâneo'

Na Odisseia de Homero, após uma série de percalços, Ulisses está no seu navio a caminho de Ítaca para resgatar seu reino. A deusa Circe o havia alerta do sobre a sedução das sereias: se se deixasse seduzir por sua canção, não escaparia delas e não chegaria a Ítaca. Sabendo disso, Ulisses pediu aos seus companheiros que o amarrassem ao mastro do navio e colocassem cera em seus ouvidos de modo que não ouvissem o canto das sereias. Moral da história: quem quer sobreviver e alcançar seu destino deve evitar o chamado sedutor que vem de fora, o canto das sereias, dominando a si mesmo e mantendo fidelidade aos seus objetivos.
A metáfora remete a percalços do campo teórico e profissional da Didática em que se observa, há algum tempo, uma avalanche de críticas ao estatuto epistemológico dessa disciplina em razão de uma suposta fragilidade de seu objeto de estudo C0mo, também, de um suposto esgotamento do seu papel na formação de professores levando alguns segmentos de intelectuais da educação a tomarem-na como disciplina antiquada e obsoleta, Compreende-se, então, os motivos que têm levado muitos dos pesquisadores e professores de Didática a se deixarem levar pelo canto das sereias de outros campos de conhecimento, permitindo que seu objeto de estudo, os processos de ensino e aprendizagem, seja apropriado por outras disciplinas como o currículo, a formação de professores, a psicopedagogia e às vezes, a sociologia da educação. É verdade que boa parte dos professores de Didática persiste em aferrasse a conceitos e práticas demasiadamente' tradicionais, reduzindo-a a prescrições diretivas e procedi mentais, É notório, por outro lado, que as questões de ensino e aprendizagem se cercam hoje de complexidade cada vez maior, requerendo aprofundamento da análise do objeto da Didática e de suas articulações com outros campos de investigação. Este texto visa argumentar em favor da relevância em aprofundar a investigação do campo teórico e profissional da Didática tendo em vista seu papel imprescindível na formação de professores.
A trajetória teórica e investigativa da Didática é um tema contemplado por várias publicações em nosso país: por exemplo, Candau' (1984, 1989); Oliveira (1988, 1992); Libâneo (1984, 1997, 1998); Pimenta ( 1997); Veiga I 1989). Este texto dá continuidade às minhas investigações anteriores sobre o campo da Didática, sua legitimidade epistemológica, as críticas originadas na sociologia da educação e na filosofia da educação, retomando a saga dessa disciplina na disputa de espaço no campo teórico, investigativo e profissional da educação. Com efeito, h.i quase três décadas ela vive sucessivos impasses em relação à sustentação de sua legitimidade epistemológica e de seu papel na formação docente, embora tenha tido fôlego para sobreviver, haja vista a realização, há quase trinta anos, dos Encontros Nacionais de Didática e Prática de Ensino. Pretende- se, assim, demonstrar que a Didática continua enfrentando o
dilema entre a fidelidade ao seu objeto e o canto das sereias, representado pelas múltiplas tentativas de outros campos científicos em solapar dela seu objeto ou substituí-Io por outros.
1. Situando o problema: a Didática no campo litigioso da educação
A questão em discussão é captar os dilemas da Didática sobre seu objeto e seu conteúdo ou, por outras palavras, se é fato que o objeto e o conteúdo "clássicos" da Didática estão saindo de cena e sendo substituídos por outros. Se isto, de fato, estiver ocorrendo, estaremos diante do desaparecimento da Didática com a ocupação do seu lugar por outras disciplinas como currículo, Didáticas específicas, formação de professores, psicopedagogia? Desse modo, trago à discussão uma hipótese básica: a Didática estaria a caminho de perder o foco do seu objeto de estudo, ou seja, a mediação da relação do aluno com os saberes por meio do ensino, sendo esse objeto distribuído em pequenas doses entre outras áreas conhecimento, principalmente o currículo e a formação de professores. O ano de 1980, demarcado historicamente pela realização da I Conferência Brasileira de Educação (CBE), inicia um período de intensa crítica política à Pedagogia e à escola então vigentes, principalmente pela tese que inseria a escola na rede de reprodução das relações capitalistas de produção. Iniciam aí as críticas à Didática provenientes de outras áreas do campo científico da educação, especialmente de intelectuais da sociologia da educação. As críticas mencionam o caráter tecnicista dessa disciplina, mas também a insignificância de seu conteúdo na formação de professores. Paradoxalmente, como resistência a essas críticas, foi se consolidando, desde o ano de 1982\ o movimento de reconfiguração teórica da Didática e de sustentação de sua identidade epistemológica, definindo seu objeto como o estudo dos processos de ensino e aprendizagem referentes aos conteúdos especificos, em situações sociais concretas. Sustenta-se como foco da Didática o estudo científico dos elementos constitutivos e das condições do ato de ensinar em suas relações com o ato de aprender e, como seu conteúdo, as relações entre ensino e aprendizagem, as peculiaridades das disciplinas escolares, as condições de apropriação de saberes; a intervenção docente do professor por métodos e procedimentos adequados a cada matéria, as formas de organização do ensino.
O tema da renovação da Didática tem merecido a atenção de vários pesquisadores, como Candau (1984, 1989), Oliveira (1997), Pimenta (1997), Libâneo (1984, 1998). Nessas obras se define a Didática como O provimento das condições de ensino que asseguram a aprendizagem dos alunos. É conhecida a posição de Candau que, considerando na Didática as dimensões humana, técnica e política, define sua especificidade:
Trata-se de conhecimento de mediação ( ... ) sua especificidade é garantida pela preocupação com á compreensão do processo ensino-aprendizagem e a busca de formas de intervenção na prática pedagógic.i (Candau, 1%-1, p. 106-107).
Oliveira menciona que a tradição da Didática está ligada a temas relacionados com ensino, mas aduz:
Ensino envolve, necessariamente, o enfrentamento de questões de como ocorre o conhecimento e da justificação e validação de resultados cognoscitivos, implicando, portanto, a dimensão epistemológica (Oliveira, 1997, p. 133).
Em cuidadoso estudo, Pimenta sistematiza a mesma problemática. Após situar a Didática como área de estudos da Pedagogia, escreve:
Seu objeto de estudo específico é a problemática do ensino enquanto prática de educação, é o estudo do ensino
em situação, em que a aprendizagem é a intencional idade almejada, e na qual os sujeitos imediatamente envolvidos (professor e aluno) e suas ações (o trabalho com o conhecimento) são estudados nas suas determinações histórico-sociais. ( ... ) O objeto de estudo da Didática não é nem o ensino, nem a aprendizagem separadamente, mas o ensino e sua intencionalidade, que é a aprendizagem, tomadas em situação ( 1997, p. 63).
Libâneo, em artigo escrito em 1984, defendia a inserção da escola na prática histórico-social visando a mediação entre o aluno ser concreto e o saber historicamente acumulado. Sobre a Didática escrevia:
O trabalho docente consiste, assim, na atuação do professor do ato educativo(...), mediando os processos o aluno se apropria ou se reapropria do saber de sua cultura e o da cultura dominante, elevando-se do senso comum ao saber cientificamente elaborado. Nesse caso, uma boa parte do campo da Didática refere-se ás mediações, assumidas pelo professor, pelas quais promoverá o encontro formativo entre o aluno com sua experiência social concreta e o saber escolar (1984, p. 139).

Autores pertencentes à tradição da teoria histórico-cultural mostram a mediação Didática visando a ativação do processo de aprendizagem. Klingberg, por exemplo, escreveu, em 1978, que o caráter científico do ensino é dado pela condução do processo de ensino com base no conhecimento das leis que governam o processo de conhecimento. Segundo ele:
O processo docente do conhecimento - embora somente em alguns casos se descubra o novo de forma objetiva - é um insubstituível campo de exercício para o desenvolvimento das forças cognoscitivas dos alunos, para sua curiosidade, sua alegria pela investigação e as descobertas, sua capacidade de poder perguntar, de ver problemas e chegar metodicamente à sua solução (1978, p. 142).
Na mesma direção segue o didata alemão Lompscher (1999), para quem a organização didática visa a promover a atividade de aprendizagem dos alunos. A efetividade do ensino, portanto, se revela ao assegurar as condições e os modos de viabilizar o processo de conhecimento pelo aluno.
Com proposições semelhantes, mas mais recentes, D'Ávila traz importante contribuição de Yves Lenoir para a compreensão das relações entre Didática e aprendizagem. Lenoir reconhece, na relação educativa escolar, a existência de dois processos de mediação: «aquele que liga o sujeito aprendiz ao objeto de conhecimento (relação S - O), chamado de mediação cognitiva, e aquele que liga o formador professor a essa relação S - O, chamado de mediação Didática" (cf. Lenoir, 1996, p. 29). Sobre isso, escreve D'Ávila:
A relação com o saber é, portanto, duplamente mediatizada: uma mediação de ordem cognitiva (onde o desejo desejado é reconhecido pelo outro) e outra de natureza didática que torna o saber desejável ao sujeito. É aqui que as condições pedagógicas e didáticas ganham contornos, no ser.tido de garantir as possibilidades de acesso ao saber por parte do
aprendiz educando (ibid., p. 31).
Tem-se, assim, certa subordinação da mediação Didática à mediação cognitiva, que é o processo de aprendizagem, um processo de objetivação do real que se dá na relação entre sujeito(s) e objeto(s), num contexto espaço-temporal deter- minado. A mediação didática consiste, nesse entendimento, em estabelecer as condições ideais à ativação do processo de
aprendizagem".
Verifica-se, assim, que a especificidade da Didática reside na busca das condições ótimas de transformação das relações que o aprendiz mantém com o saber. Nesse sentido, o campo da Didática depara com a tarefa teórica e investigativa de retomar seu objeto próprio - a mediação das aprendizagens ou as relações entre a aprendizagem e o ensino - tornando a disciplina mais efetiva na formação profissional de professores.
O termo "aprendizagem", neste texto, vincula-se à tradição da teoria histórico-cultural iniciada por Vygotsky, referindo-se a processos de mudanças qualitativas mais ou menos estáveis na personalidade, efetivados pela internalização de significados sociais, especialmente saberes científicos, procedimentais e valorativos, por mediações culturais e interações sociais en- tre o aprendiz e outros parceiros, que promovem o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos, Tal como expressa Vygotsky, trata-se de uma reconstrução individual da cultura num processo de interação com outros indivíduos, em que processos que são, inicialmente, interpsíquicos se convertem em processos intrapsíquicos (Vygotsky, 1984, p. 64-65). Sendo assim, a intervenção pedagógica pelo ensino é imprescindível para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral. Pelo ensino se opera a mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento. Mais especificamente, o professor possui papel ativo e intencional na promoção da aprendizagem dos alunos ao atuar na formação de ações mentais, aprimorando sua capacidade reflexiva, ou seja, o papel do ensino é promover o desenvolvimento mental por meio da aprendizagem, convertendo a aprendizagem em desenvolvimento.
Conforme anunciado, o problema central a debater é, precisamente, a crescente perda, no âmbito da pesquisa e da docência, da referência a esse objeto. O distanciamento do campo da educação do objeto de estudo da Didática, levando à descaracterização do seu foco epistemológico, é, provavelmente, decorrência de conflitos teóricos e ideológicos, dentro desse "campo" Tais conflitos teóricos e ideológicos decorrem de fatores sociais, políticos, culturais e epistemológicos, incrustados na história da educação brasileira, que colocam o campo teórico e prático da educação em impasses, incertezas e indefinições.
Passo, em seguida, a sugerir algumas hipóteses explicativas desse fenômeno, com o objetivo de ampliar a compreensão do dilema exposto inicialmente: manter a fidelidade ao objeto da Didática ou deixar-se seduzir pelo canto das sereias, representado pelas múltiplas tentativas de outros campos científicos em substituir este objeto por outros.
5 Lenoir aproxima-se aqui de uma das ideias-chave da teoria histórico-cultural, de que toda atividade individual é antes uma atividade coletiva, ou seja, os saberes e modos de atuação, antes de serem interiorizados, são produto da atividade social. Nas palavras de D'Avila, para Lenoir, a mediação cognitiva ou, ainda, o processo de objetivação do objeto (do real) antes de individual é social. O sujeito é autor, criador, do saber social espaço-temporalmente determinado. Lenoir explica essa assertiva quando toma o saber como uma necessidade a todo sujeito, individual ou coletivo, necessidade esta de analisar sua prática, sua história e lhe conferir um sentido. O indivíduo, então, é possuidor de lima necessidade de saber sobre si e sobre o real (cf D'Ãvila, op. Cit
6 Cabe esclarecer que esta noção de aprendizagem é inteiramente distinta da visão instrumental disseminada em documentos das reformas educativas neoliberais, especialmente aquela inscrita na Declaração Mundial sobre Educação para Todos, formulada na Conferência de lorntien (Tailândia) em 1990. Nesse documento, encontramos esta frase: "cada pessoa - criança, jovem ou adulto - deverá aproveitar as oportunidades educativas destinadas a satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem". Necessidades básicas referem-se, aí, a "aprendizagens mínimas", enquanto aquisição de competências básicas para sobrevivência social, em que a aprendizagem transforma-se numa mera necessidade natural, perdendo seu caráter cultural, cognitivo.
2. Hipóteses explicativas para a crescente fragmentação do objeto de estudo
Que fatores sociais, culturais, políticos, epistemológicos têm levado a Didática a distanciar-se do seu objeto? Por que hoje os programas de Didática tratam de todos os temas, menos daqueles que ajudam os professores a atuar eficazmente nos processos de aprendizagem dos alunos? Por que os professores se deixaram seduzir pela afirmação redutora de que os problemas da escola não são técnicos, mas políticos? É possível repudiar totalmente essa afirmação? O que explica a tendência de substituir o conteúdo da Didática por temas ligados à formação de professores ou ao currículo? Por que a literatura sobre formação de professores tem passado ao largo das questões essenciais da sala de aula, do ensino e da aprendizagem? A busca de explicações para essa situação está, a meu ver, em fatores interligados que precisam ser conjugados entre si. São eles:

a) Tendência recorrente, em nosso país, de sociologização do pensamento pedagógico em prejuízo do desenvolvimento da ciência pedagógica.
b) Enfraquecimento do campo teórico e investigativo da Pedagogia, com conseqüências no questionamento de sua legitimidade epistemológica e de seu lugar na formação de professores.
c) Surgimento e desenvolvimento do discurso pós-estruturalista.
d) Impactos diretos e indiretos das concepções de políticas sociais do neoliberalismo e sua repercussão nas diretrizes sobre políticas educacionais e práticas escolares.
e) Conjugação de fatores externos à escola (sociais, políticos, institucionais) que incidem na diversidade de concepções sobre escola, ensino, e na desvalorização acadêmica da pesquisa voltada para a sala de aula.
a) A concepção sociologizada da educação
A sociologização do pensamento pedagógico é um fenômeno conhecido na história da educação brasileira desde o movimento dos pioneiros da educação nova, passando pelo período de resistência de intelectuais ao regime militar desde os anos de 1980, e acentuado nas duas últimas décadas em virtude da repercussão, aqui, da produção intelectual da sociologia crítica da educação oriunda de países europeus e dos Estados Unidos. Utilizo a expressão "sociologização" para referir-me à dominância da análise sociológica, especialmente
as determinações sociais sobre a instituição escolar e os processos pedagógico-didáticos. A expressão não é minha, é do sociólogo Luiz Pereira, em artigo publicado em 1962 (Pereira,
1967). Nele o autor analisa o papel da sociologia no conhecimento da realidade educacional por meio da pesquisa empírica em oposição a uma Pedagogia freqüentemente abstrata e prescritiva, o que levou à hegemonia sociológica no pensamento educacional. Tal hegemonia é, também, frequentemente explicada pela resistência dos sociólogos à forte presença, no campo educacional, da tradição psicopedagógica (Brandão et aI., 1996)1.
A influência da sociologia da educação na concepção de escola e ensino pode ser avaliada pelo surgimento, nos últimos 30 anos, de várias vertentes que incluem pesquisadores
estrangeiros e brasileiros: a) a sociologia marxista; b) o re- produtivismo; c) a sociologia educacional freireana; d) a teoria curricular crítica; e) a sociologia educacional francesa; f) a
sociologia do trabalho docente; g) a sociologia educacional de inspiração neoliberal.
Não cabe neste texto a exposição detalhada de cada uma das sete vertentes mencionadas. Contento-me em explicitar alguns traços comuns a partir da expressão "sociologização do pensamento pedagógico", no que diz respeito especialmente à discussão que vem sendo feita neste texto: o obscurecimento da Pedagogia e dos pedagogos e o desfocamento do objeto da Didática. Analisarei quatro daquelas vertentes.
7 Essas mesmas autoras (p. 251 citam Antonio Cândido. segundo o qual a influência da sociologia da educação na definição do campo científico da educação é explicada pelo aparecimento de três tendências: a filo- sófico-sociológica. a pedagogíco-sociologica e a propriamente sociológica. A primeira identifica-se com Durkheim e Dewey; a segunda acentua a relação entre escola e comunidade. colocando a sociologia como COI11ponente da Pedagogia e da administração escolar; a terceira tendência toma a pesquisa em ciências sociais como contribuição aos objetivos da ação educacional. Não é preciso muito esforço para constatar que efetivamente essas três tendências estão presentes nas concepções de políticas educacionais e no funcionamento das escolas brasileiras. ontem e hoje.
A sociologia Marxista e as teorias reprodutivistas
Essas duas correntes concebem a escola e o ensino dentro das categorias da divisão social do trabalho e da reprodução das relações sociais de produção, a partir de diferentes focos de aná- lise. Ambas influenciaram consideravelmente o campo da educação entre o fim da década de 1970 e a década de 1980, período em que se vislumbrava a abertura política do regime militar e em que cresceu a contestação política da sociedade a esse regime, abrindo-se espaço à formulação de modelos de análise teórica.
Um dos argumentos que penetraram fortemente nos cursos de formação de professores e nos estudos acadêmicos foi a crítica à divisão social e técnica do trabalho capitalista, que separa o trabalhador dos meios ou instrumentos de trabalho, formando uma classe que pensa, desenvolve os meios de trabalho, controla o trabalho, e outra classe que faz serviço prático, cumpre determinações do gestor, fundando a desigualdade social. Na escola instaura-se a desigualdade de posições, fragmenta-se o trabalho pedagógico e promove-se a desqualificação do trabalho dos professores. Para conter esse processo de expropriação do saber dos professores, far-se-ia necessário eliminar a divisão de tarefas na escola, de modo que todos fossem professores, e não uns professores, outros
coordenadores ou diretores. Também a formação profissional dos educadores deveria romper a fragmentação do trabalho escolar, deixando-se de oferecer as habilitações profissionais para formar pedagogos-especialistas. A Pedagogia e a Didática, responsabilizadas pela formação técnica dos professores, portanto acusadas também de retirar deles a capacidade de reflexão e a autonomia profissional, deveriam ser substituídas por disciplinas com conteúdo crítico para formar a consciência social e política. Esse modo de compreender o trabalho escolar constituiu-se quase que como o denominador comum de diferentes posições à esquerda (cf. Libàneo, 2006b).
A despeito da notável penetração dos modelos de análise crítica no meio universitário e nas associações sindicais e científicas, na prática esse entendimento provocou um visível empobrecimento nas condições de funcionamento da escola e no trabalho dos professores. Com o predomínio nos currículos de formação de disciplinas consideradas "críticas", ficaram em segundo plano, disciplinas como Didática, metodologias e práticas de ensino, mais diretamente ligadas ao trabalho pedagógico-didático e à aprendizagem dos alunos. As escolas ficaram sem coordenadores pedagógicos. Com o empobrecimento gradativo da pesquisa pedagógico-Didática voltada para os temas da aprendizagem e desenvolvimento humano, ampliou-se o distanciamento da formação em relação às questões concretas do ensino e da aprendizagem escolar, a verdadeira razão de ser das escolas e salas de aula.
Essa desconexão entre a pesquisa acadêmica e as práticas escolares efetivamente desenvolvidas nas salas de aula decorreu da separação entre concepção política e social da formação de professores e as formas "pedagógicas" e operativas dessa formação. Foi outra das consequências da sociologização do pensamento pedagógico. Nesta visão da formação, emancipa- se o professor, mas não se investe em ações para prepará-lo intelectualmente e metodologicamente para que ele contribua no processo de emancipação do aluno, processo direto de ensino e aprendizagem.
A teoria curricular crítico
Essa corrente surge na esteira da Nova Sociologia da Educação inglesa (por volta de 1990) e da sociologia crítica norte-americana. Seu mote é a discussão do conhecimento como implicado em relações de poder. É uma abordagem sociológica do currículo, oriunda da sociologia crítica do currículo inglesa, mas influenciada também por outras orientações teóricas, como o neomarxismo, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, as teorias da reprodução, a psicanálise, a fenomenologia, a etnometodologia e o interacionismo simbólico (Moreira e Silva, 1994, p. 14). Trata-se de um movimento teórico vigoroso e aberto a outras portas de entrada na análise contextual da educação e graças a isso foi ganhando espaço investigativo e intelectual.
A sociologia crítica do currículo acentua os fatores so- ciais e culturais na construção do conhecimento, introduzindo no debate educacional temas como poder, ideologia, linguagem, cultura, currículo oculto. Destaca o papel das relações de poder na seleção e organização do conhecimento escolar, assim como na definição de objetivos educacionais. Ocupa-se também da compreensão do mundo da cultura como espaço de disputas entre diferentes concepções de vida social, onde se pode criar e produzir outra cultura. Assim, a escola é um dos lugares em que se podem ouvir as experiências e as vozes dos atores educativos - alunos, professores, pais - visando ao acolhimento da diversidade, das diferenças, uma educação multicultural (Giroux e Simon, 1994, p. 50).
A teoria curricular crítica se afasta deliberadamente das questões clássicas da aprendizagem, do ensino, dos processos cognitivos, do desenvolvimento humano, restando pouco espaço à Didática, dispensando-se processos de formação da mediação cognitiva.

A sociologia do trabalho docente
Essa corrente enfatiza a atividade profissional dos professores, envolvendo a natureza do seu trabalho, seu caráter interativo, seus conhecimentos e competências, os locais de formação. A sociologia do trabalho docente é a fonte teórica e investigativa de uma nova disciplina, "formação de professores': já presente em muitos currículos. Essa disciplina teria como objeto o estudo da docência, assim definida por Tardiff e Lessard:
( ... ) uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu "objeto" de trabalho, que é justamente um outro ser humano,
no modo fundamental da interação humana (2005, p. 9).
A partir dessa definição, estudam-se questões como: identidade profissional, conhecimentos exigidos, experiência profissional exigida, condições e recursos de trabalho, saber experiencial do professor, formas de organização escolar e sua consequência no trabalho do professor, carreira docente, formas de interação com os alunos. O elemento central da docência seria o contexto do trabalho interativo cotidiano, tal como escrevem os autores: "A docência é um trabalho cujo objeto não é constituído de matéria inerte ou de símbolos, mas de relações humanas" (ibid., p. 35). Seriam esses os temas de uma nova disciplina, a formação de professores, que, em alguns lugares, estariam ocupando o espaço dos conteúdos da Didática.
Da minha parte, firmado na tradição Didática, entendo que o objeto de trabalho da atividade docente não é em primeiro lugar a interação, mas a mediação da aprendizagem dos
alunos. Não posso negar que a aprendizagem está referida à organização escolar, a modelos de gestão, a interações, isto é, ao ambiente que propicia as formas de regulação e controle do trabalho dos professores e que esse tipo de estudo seja fundamental. Apenas entendo que a Didática possui objeto de estudo e conteúdos distintos, ou seja, o estudo da atividade docente não pode substituir a Didática, uma vez que está baseada na sociologia do trabalho, na sociologia das profissões e nas formas de organização da escola e não em questões de aprendizagem e de desenvolvimento dos alunos.
b) Enfraquecimento do campo teórico e investigativo da Pedagogia
Os fatores analisados anteriormente incidiram no esvaziamento da Pedagogia e da Didática, especialmente do seu campo teórico e investigativo. O tema tem sido amplamente examinado (Libâneo, 1998,2003; Franco, Libâneo e Pimenta, 2007; Franco, 2003), mostrando os vários momentos desse esvaziamento. Primeiramente, ocorreu nos currículos a redução do espaço da Didática em nome do seu caráter tecnicista, prescritivo etc. E sua substituição pelas ciências "nobres" da educação. Em seguida, veio a eliminação da formação pedagógica específica para os especialistas, tirando das escolas os coordenadores pedagógicos e orientadores educacionais. Depois, veio a transformação do curso de Pedagogia num curso de licenciatura, esvaziando o estudo da teoria pedagógica, posição essa recentemente consolidada pela Resolução n. 1 do CNE. O vazio teórico e investigativo foi sendo ocupado por outras ciências da educação, sem reação dos pedagogos. Em artigo recente, afirmei que a descaracterização do campo teórico da Pedagogia e da atuação profissional do pedagogo limitou e enfraqueceu a investigação no âmbito da ciência pedagógica com prejuízos ao sistema de ensino e às escolas. Escrevi também:
C om raras exceções, são raros os pedagogos de for mação. E pior, com as mudanças curriculares centradas na decência, não se formam mais os pedagogos para pensar e formu-
lar políticas para as escolas, analisar criticamente inovações pedagógicas. formular teorias de aprendizagem, investigar novas metodologias de ensino, concepções e procedimentos
de avaliação escolar (Libàneo, 2006b).
Lastimavelmente continuamos a ouvir de professores de outras áreas fora da educação, dos professores das licenciaturas, dos sociológicos e filósofos da educação, que a Pedagogia e a Didática são "perfumaria". É sabido que os professores de Didática vindos da Pedagogia reduzem seu conteúdo ao planejamento de ensino, às técnicas de ensino, às prescrições sobre a conduta do professor na classe, confirmando o que dá motivo às críticas: uma Didática teoricamente pobre, meramente instrumental, normativa, prescritiva. Muitos professores de Didática e prática de ensino reforçam os estereótipos em relação à Didática. A superação dessa situação poderia começar com os pedagogos fazendo o "rnea culpa" pelo empobrecimento da teoria e da pesquisa pedagógica em sala de aula, deixando-se levar pelo discurso de outras áreas do campo educacional", levando ao desfocamento do objeto da Didática.
8 A descaracterização do campo teórico-investigativo da Pedagogia e da Didática não veio apenas do predomínio do discurso sociológico. Os pedagogos também não foram competentes em articular o conteúdo da Didática com o das Didáticas específicas. Reféns da Didática instru- mental, desconhecem a teoria do conhecimento e a epistemologia das disciplinas, de modo que possam buscar nas Didáticas específicas uma base importante para construir o conteúdo da Didática. Essa não conexão com a epistemologia das Didáticas específicas permitiu o abandono da Didática pelas Didáticas específicas, ou seja, algumas disciplinas específicas (química, física, p. ex.) correram na frente e acabaram tendo Um desenvolvimento teórico e metodológico em separado da Didática chamada de geral .
Em resumo, o empobrecimento do campo teórico e investigativo da ciência pedagógica está diretamente associado ao esvaziamento teórico da ciência pedagógica e da pesquisa pedagógica nos cursos de formação, à contestação da Didática como campo teórico e investigativo, à eliminação da formação do pedagogo especialista (cujos conhecimentos por excelência são a teoria pedagógica e a Didática) e às dicotomias equivocadas: Pedagogia X licenciatura; coordenação pedagógica X atividade do professor, difundidas pela Associação Nacional pela Formação Profissional de Educadores (ANFOPE).
C) O pensamento pós-estruturalista
O pensamento pós-estruturalista (Foucault, Derrida, Deleuze), a partir do início dos anos de 1990, também tem sido uma fonte de pesquisadores do currículo. A posição pós- estruturalista, ao lidar com temas da ideologia, do poder, da linguagem, recusa os referentes, não há narrativas certas ou erradas. A linguagem constitui a realidade, por isso os significados nunca são fixos, são sempre constituídos no seio de determinadas práticas. As narrativas são parciais, dependem da posição dos emissores, não havendo uma posição privilegiada para a emissão de discursos (Lopes e Macedo,
2002, p. 23). Estas autoras expõem a visão de sujeito no pós- estruturalismo:
( ... ) em quase toda literatura crítica moderna é possível encontrar o pressuposto de um sujeito com uma consciência unitária, homogênea, centrada, capaz de superar um estado de alienação submetido à dominação para alcançar um estado consciente, lúcido, crítico e, por conseguinte, livre e autônomo. (No pós-estruturalismo) há a defesa da subjetividade como fragmentada, descentrada e contraditória e o questionamento das ideias de emancipação e de conscientização (p. 24).
Sendo assim, autores dessa orientação teórica ironizam educadores que se imbuem da missão de formar sujeitos conscientes, críticos, autônomos (Silva, 1994, Garcia, 2002), já que rejeitam a ideia de que o conhecimento possa ser fonte de libertação, esclarecimento, autonomia. Argumentam que a atuação na educação de sujeitos deveria estar assentada nas diferenças. O currículo não será, então, a seleção e organização do conhecimento, mas uma instância pela qual se podem produzir significados sociais a partir do reconhecimento das diferenças. É, pois, um currículo da diferença que "historiciza, politiza e culturaliza todos os currículos já construídos pela maioria das populações e inventando novos e ousados arranjamentos curriculares" (Corazza, 2002, p. 107).
O que esse tipo de currículo se propõe é estudar todas as culturas com seus conflitos e negociações, mas põe em destaque as culturas subordinadas. Um processo curricular intercultural funciona à base de estratégias de discussão, problematização, ações cooperativas entre professores e alunos numa comunidade, ignorando as divisões e classificações de saberes, a organização em séries ou faixas etárias, disciplinas convencionais. O currículo pós-disciplinar escreve Corazza, tem como critério para a seleção de saberes a análise de problemas sociais e políticos para a construção e desconstrução de identidades em todo e qualquer espaço de subjetivação do ser humano. Desse modo, o currículo visa a formar analistas críticos das culturas para preparar intelectuais públicos (p. 109).
d) Orientações políticas neoliberais
É considerável o impacto na educação das orientações econômicas e políticas do neoliberalismo, destinadas a conduzir reformas na. América Latina. Considerada a educação fator de desenvolvimento social e econômico, trata-se de saber como aumentar a produtividade da escola e, assim, lança- se mão de ações em quatro âmbitos: currículos, gestão, formação de professores, avaliação. De modo geral, concebe-se como nuclear a gestão das escolas, já que o fracasso da escola está associado à incapacidade de gestão do Estado. Então é preciso adotar procedimentos administrativos da empresa privada mais eficazes. A concepção de escola é de uma escola tecnicista, para habilitar alunos a cumprirem tarefas, com base num conceito economicista de competência. Segundo Saviani, na teoria neoliberal, são realçadas as competências individuais para que as pessoas consigam melhores posições no mercado de trabalho. Em decorrência disso, afirma que a educação é vista como investimento em capital humano que habilita os indivíduos para a competição.
Não interessam, em primeira instância, os processos de aprendizagem, mas a prescrição de um currículo, de formas de gestão e de procedimentos de avaliação, para o que são necessários professores que saibam aplicar eficientemente as prescrições. Esse é o professor desejado pelas reformas neoliberais, e já sabemos de que Didática necessitam.
e) Fatores externos ao campo científico e investigativo da educação
É relevante considerar, também, dificuldades de formular um projeto nacional de escola, derivadas de posições divergentes entre professores universitários, pesquisadores, militantes de associações e sindicatos, dirigentes de cursos de formação, legisladores, especialistas em políticas educacionais etc. A própria forma de organização do campo científico da educação, representada pela ANPEd, é extremamente problemática, e suas reuniões se caracterizam por grande dispersão temática, fechamento de grupos, distanciamento da problemática real das escolas. As organizações de docentes e pesquisadores não conseguem, há anos, investir teórica e cientificamente na definição de políticas educativas para a escola: formulação de objetivos sociais e culturais para a escola, das capacidades a formar, das competências cognitivas e habilidades, dos formatos curriculares, das metodologias de ensino, das práticas de gestão dentro da escola, dos níveis esperados de desempenho escolar dos alunos.
Enfim, os fatores externos à escola e ao ensino que incidem, precisamente, na desvalorização da escola e do ensino são, entre outros: a dissociação entre políticas educacionais e o funcionamento interno das escolas, o escanteamento da pesquisa sobre a escola e o ensino nas associações científicas e profissionais, a disputa de hegemonia entre "campos" científicos, o que explica, em boa parte, a desqualificação da sala de aula como objeto de pesquisa.
A crítica que acabo de fazer a algumas correntes teóricas, especialmente à sociologia da educação, de forma alguma significa desapreço a esses campos científicos. A elas cabe, efetivamente, a abordagem analítica externa dos determinantes sociais, das instituições educativas, na busca de relações entre o macro e micro do sistema educacional. O problema que venho apontando ao longo deste texto é o viés da análise sociopolítica, desconsiderando que o fenômeno educativo é pluridimensional, comportando, pois, também uma análise pedagógica.
3. Perspectivas para o revigoramento do campo teórico e profissíonal da Didática ou "para chegar a Ítaca"
A incursão sobre os problemas da Didática e as hipóteses apresentadas são tentativas de buscar explicações para o esvaziamento de seus conteúdos e de seu campo de investigação,
decorrente, em boa parte, da perda da referência de seu objeto de estudo e do desprestígio acadêmico dentro do campo da educação. Tal esvaziamento ocorreu em paralelo à descarac-
terização do campo investigativo e profissional da Pedagogia, um fato bastante peculiar da história da educação brasileira, em que a especificidade "pedagógica" do educativo foi subs-
tituída pela sociológica ou política, produzindo danos inestimáveis à atividade escolar. O resultado mais recente disso é a ocupação do espaço disciplinar e investigativo da Didática
por conteúdos de outras disciplinas como currículo, Didáticas especiais, sociologia da educação, formação de professores, psicopedagogia.
Em minha opinião, a descaracterização do campo científico e profissional da Pedagogia trouxe sérias conseqüências para o ensino e a prática escolar: a) o desaparecimento dos pedagogos especialistas em teoria educacional, dimensões da educação, teoria da escola, pesquisa pedagógica, levou à substituição do discurso pedagógico por outros da sociologia,
das políticas da educação, da filosofia, da formação de professores; b) dispersão das concepções de escola e ensino, pois cada campo científico, cada tendência curricular, cada linha teórica, cria suas propostas particulares de escola frequentemente desconectadas das demandas reais e práticas das escolas, do ensino e da aprendizagem dos alunos; c) o sumiço de temas da pesquisa científica voltados especificamente para a mediação didática das aprendizagens e para as peculiaridades muito concretas das escolas e salas de aula como as práticas de ensino necessárias para ajudar os professores a lidar com o conteúdo e a motivação dos alunos, as estratégias para lidar com as diferenças, as formas de organização e gestão da classe, a avaliação da aprendizagem; d) a falta de investigação nessa problemática contribuiu para que persista nos cursos de formação de professores a Didática instrumental restrita ao planejamento, técnicas de ensino, prescrições, ou seja, professores de Didática, em muitos lugares, continuam oferecendo aos futuros professores um conteúdo simplificado, meramente instrumental, dando margem às críticas às limitações epistemológicas da Didática, à sua falta de cientificidade e sua redução à sua dimensão instrumental.
9 Em outro texto (Libáneo, 2006), sintetizo duas visões diferentes das finalidades da escola e do ensino dentro da perspectiva crítica: a abordagem da formação humana pela cultura e pela ciência, considerando contextos reais da aprendizagem (teoria histórico-cultural), e a abordagem da [armação pela experiência provida nas situações educativas (teoria curricular crítica, Pedagogias do cotidiano, Escola Plural etc.), mais focada nos aspectos socioculturais de organização escolar como o cotidiano, a diferença, as virtudes sociais, menos voltada aos conteúdos e aos elementos pedagógico-didáticos da aprendizagem. É evidente que dessas abordagens resultam diferentes posições em relação ao papel da Pedagogia e da Didática
A Didática na encruzilhada
Os professores e os pesquisadores do campo da Didática põem-se hoje diante de uma encruzilhada: a) retomar a especificidade do objeto da Didática - as relações entre a apren-
dizagem e o ensino -, assegurando seu papel de disciplina imprescindível à formação profissional de professores e de campo investigativo com características próprias; b) ou abdi- car de postular a especificidade de seu objeto, aceitando a fragmentação de seu conteúdo em temas dispersos, com danos à qualidade da prática docente voltada para a aprendizagem e o desenvolvimento humano dos alunos.
Assumida a primeira posição, que caminhos a Didática deveria trilhar para fortalecer e enriquecer as aproximações ao seu objeto de estudo e, assim, revigorar seu campo teórico e profissional? A resposta mais geral é esta: manter o discurso pedagógico moderno de centrar a escola e o ensino no conhecimento e no desenvolvimento cognitivo dos alunos e, ao mesmo tempo, ampliar a investigação dos elementos constitutivos do seu objeto, tais como as dimensões socioculturais, antropológicas, comunicacionais, midiáticas. A meu ver, a garantia de êxito do revigoramento teórico da Didática depende, ao menos, de três coisas: a) conceber a escola como lugar de formação cultural e científica, em função do direito e do dever social da escolarização como condição necessária, entre outras, para a justiça social e a eliminação das diferenças sociais; b) Ao lado de se garantir o que é clássico de seu conteúdo, incorporar contribuições de outras áreas, mas distinguindo-se de outras disciplinas concorrentes como o currículo, a formação de professores, a psicologia educacional, as Didáticas específicas; c) busca de formas de integração entre a Didática e as Didáticas específicas, que possam convergir para uma teoria Didática mais completa, mais abrangente, em que se tenham em mente as relações entre epistemologia e Pedagogia.
Entre as tarefas mais específicas em função do revigoramento teórico e profissional da área, destaco cinco. Em primeiríssimo lugar, trata-se da recuperação por parte dos pedagogos (os que ainda existem) do campo teórico e investigativo da Pedagogia e da pesquisa propriamente pedagógica, nos quais se incluem a Didática e as Didáticas específicas. Há. algo da tradição teórica da ciência pedagógica que não poderia ter se perdido: o objeto pleno da investigação pedagógica é a prática educativa real. Nenhuma investigação no campo da educação, vista seja pelo lado da sociologia, da psicologia, da antropologia, da economia, da história da educação, seja pelo lado da cultura, das políticas sociais, da gestão do sistema de ensino e das escolas, da Didática etc., poderia deixar de tomar como ponto de partida este fato: o nuclear da educação, de toda prática educativa, é a formação e o desenvolvimento humano em situações concretas. Em termos mais precisos: a
educação tomada como Lima prática social materializada numa atuação efetiva na formação e desenvolvimento de seres humanos, em condições socioculturais e institucionais concretas, implicando práticas e procedimentos peculiares, visando mudanças qualitativas na aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos. Em minha opinião, este é o requisito de legitimidade epistemológica de qualquer das chamadas "ciências da educação". Por mais que seja sumamente necessário e indispensável considerar os fatores exógenos, externos, das práticas educativas, o foco, a direção final da pesquisa educacional tem que ser este: as mudanças qualitativas no desenvolvimento e na personalidade dos sujeitos (Libâneo, 2008).
Portanto, sem uma unidade conceitual e metodológica do campo teórico da Pedagogia, as questões da educação e do ensino se fragmentam ao sabor da disputa hegemônica entre os outros campos (sociologia, psicologia, linguística etc.). Para isso, seria absolutamente imprescindível suspender a vigência da Resolução CNE 1/2006, que estabelece as Diretrizes Curriculares para o curso de Pedagogia, pela sua concepção restritiva, simplória e ineficiente da formação profissional de educadores.
A segunda tarefa é, assim, a recuperação do campo teórico e investigativo da Didática. Há, sem dúvida, que se sustentar a imprescindibilidade de assegurar à Didática sua especificidade: estudar as relações entre ensino e aprendizagem, ou seja, as formas da mediação didática da mediação cognitiva. Isso supõe retomar o estreito vínculo dos métodos de ensino com outros tipos de métodos: a) o método geral do processo de conhecimento (teoria do conhecimento); b) os métodos da cognição: processos internos da aprendizagem (psicologia do desenvolvimento e aprendizagem); c) os métodos particulares das ciências. Verificam-se, assim, três grupos de fundamentos, o da teoria do conhecimento, o da psicologia da educação e o da epistemologia das ciências ensinadas. Neste último aspecto, é preciso que os pesquisadores em Didática busquem estabelecer relações teóricas mais estreitas e mais sólidas entre a Didática e a epistemologia das ciências, do que resultará a unidade teórica e investigativa entre a Didática e as Didáticas específicas.
Com isso, a Didática pode definir-se como a sistematização de conhecimentos e práticas referentes aos fundamentos, condições e modos de realização do ensino e da aprendizagem, visando ao desenvolvimento das capacidades mentais e da personalidade dos alunos, em situações histórico-culturais e institucionais concretas.
A terceira tarefa consiste em recentrar a pesquisa didática na escola e no ensino, mantendo a crença de que o conhecimento teórico-científico é o meio primordial de desenvolvimento cognitivo e de formação da personalidade dos alunos. É nas escolas e nas salas de aula que se garante a qualidade de ensino. A pesquisa em Didática subordina-se ao específico da pesquisa pedagógica: a compreensão e o aprimoramento das ações de educação e ensino, isto é, dos processos formativos do ser humano em situações concretas, visando a mudanças qualitativas no modo de ser e de agir das pessoas.
Os pedagogos e formadores de professores precisam, por exemplo, retomar algo que se perdeu ao longo dos embates ideológicos dos últimos trinta anos: um professor necessita dominar instrumentos de trabalho: as teorias, os conceitos, os métodos, mas também os modos de fazer, os procedimentos, as técnicas de ensino. As críticas ao modelo da racionalidade técnica não poderiam ter deixado os professores desprovidos do "saber fazer", dos modos de condução da sala de aula. A compreensão da prática, o pensar sobre a prática, passa pelo domínio dos instrumentos de exercício profissional. Não se trata da técnica pela técnica, mas de associar de modo mais eficaz o modo de fazer e o princípio que lhe dá suporte.
Trata-se, assim, de retomar na pesquisa problemas como: análise e organização de conteúdos e metodologias, metodologias cooperativas, procedimentos de ensino, as formas de
organização da escola e da aula enquanto práticas educativas, as formas de atuação nos motivos e na formação da personalidade dos alunos.
A quarta tarefa é a ampliação do entendimento dos elementos constitutivos da Didática: socioculturais, antropológicos, lingüísticos, estéticos, comunicacionais, midiáticos. A Didática, certamente, precisa manter fidelidade aos seus elementos constitutivos clássicos: o que ensinar, para quem ensinar, como ensinar, ou seja, os elementos que a definem como mediação da aprendizagem. Mas há que se dar maior atenção ao elemento "condições concretas", tanto as de ensino como as de aprendizagem, pois o ato didático como escreveu há quase trinta anos (Libâneo, 1980), carrega múltiplas dimensões. Assim, se faz necessária a incorporação de temas de outras áreas relacionados com a linguagem, a cultura, a diferença, a educação intercultural, os processos comunicacionais, as formas de comunicação docente e a interação com os alunos, a utilização de ferramentas e espaços virtuais, colhidos das pesquisas mais recentes em estudos da cultura, na sociologia curricular crítica, na sociolinguística, nos estudos das relações de poder, das teorias da comunicação e informação. Especialmente relevante é a associação entre a atividade de ensino e o papel dos contextos socioculturais e institucionais nas aprendizagens.
Finalmente, põe-se a tarefa de investir na especificidade da pesquisa pedagógica e didática. Hoje ainda predominam nessas áreas procedimentos investigativos fortemente vinculados às ciências sociais, como a pesquisa-ação, sem considerar as peculiaridades das ações de ensino e aprendizagem
voltadas para a formação de ações mentais, isto é, para promoção de mudanças em relação a níveis futuros esperados de desenvolvimento mental.
Para concluir
Este texto trouxe meu posicionamento pessoal diante dos problemas atuais enfrentados pela Didática, inevitavelmente conectado às minhas convicções. A disputa hegemônica entre campos científicos, as divergências dentro de um mesmo campo e, ainda, o confronto ou diálogo entre diferentes posições epistemológicas são ocorrências típicas da atividade científica. Mas os pesquisadores da problemática pedagógica e didática e os professores formadores de professores precisam fazer-se presente nesse embate teórico, reivindicando com competência científica a peculiaridade da investigação pedagógico-didática, claro, sem perder de vista a contribuição das ciências da educação. Por sua vez, os pesquisadores vinculados às demais ciências da educação precisam tomar-se de mais modéstia, compreendendo que, na discussão teórica da educação todo o reducionismo é prejudicial e toda insistência em ver o objeto de estudo da Pedagogia, a prática educativa, apenas sob uma ótica resulta em visões parcializadas da ação educativa e escolar.
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2 comentários:

  1. A discussão desse texto foi muito interessante pra nossa formação, pois os questionamentos aí retratados são de extrema relevância para nossa prática docente.

    Ass: Diego Sena

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