quinta-feira, 13 de outubro de 2011

TEXTO 06 - PLANEJAMENTO DO ENSINO NUMA PERSPECTIVA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO

PLANEJAMENTO DO ENSINO NUMA PERSPECTIVA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO

Antônia Osima Lopes*

Na prática pedagógica atual o processo de planejamento do ensino tem sido objeto de constantes indagações quanto à sua validade como efetivo instrumento de melhoria qualitativa do trabalho do professor. As razões de tais indagações são múltiplas e se apresentam em níveis diferentes na prática docente.

A vivência do cotidiano escolar nos tem evidenciado situações bastante questionáveis nesse sentido. Percebeu-se, de início, que os objetivos educacionais propostos nos currículos dos cursos apresentam-se confusos e desvinculados da realidade social. Os conteúdos a serem trabalhados, por sua vez, são definidos de forma autoritária, pois os professores, via de regra, não participam dessa tarefa. Nessas condições, tendem a mostrarem-se sem elos significativos com as experiências de vida dos alunos, seus interesses e necessidades.

Percebe-se também que os recursos disponíveis para o desenvolvimento do trabalho didático tendem a ser considerados como simples instrumentos de ilustração das aulas, reduzindo-se dessa forma a equipamentos e objetos, muitas vezes até inadequados aos objetivos e conteúdos estudados.

Com relação à metodologia utilizada pelo professor, observa-se que esta tem se caracterizado pela predominância de atividades transmissoras de conhecimentos, com pouco ou nenhum espaço para a discussão e a análise crítica dos conteúdos. O aluno sob esta situação tem se mostrado mais passivo do que ativo e, por decorrência, seu pensamento criativo tem sido mais bloqueado do que estimulado. A avaliação da aprendizagem, por outro lado, tem sido resumida ao ritual das provas periódicas, através das quais é verificada a quantidade de conteúdos assimilada pelo aluno.

Completando esse quadro de desacertos, observa-se ainda que o professor, assumindo sua autoridade institucional, termina por direcionar o processo ensino-aprendizagem de forma isolada dos condicionantes históricos presentes na experiência de vida dos alunos.

No contexto acima descrito, o planejamento do ensino tem se apresentado como desvinculado da realidade social, caracterizando-se como uma ação mecânica e burocrática do professor, pouco contribuindo para elevar a qualidade da ação pedagógica desenvolvida no âmbito escolar.

No meio escolar, quando se faz referência a planejamento do ensino, a ideia que passa é aquela que identifica o processo através do qual são definidos os objetivos, o conteúdo pragmático, os procedimentos de ensino, os recursos didáticos, a sistemática de avaliação da aprendizagem, bem como a bibliografia básica a ser consultada no decorrer de um curso, série ou disciplina de estudo. Com efeito, este é o padrão de planejamento adotado pela grande maioria dos professores e que, em nome da eficiência do ensino disseminada pela concepção tecnicista de educação, passou a ser valorizado apenas em sua dimensão técnica.

Ao que parece, essa situação dos componentes do plano de ensino de uma maneira fragmentária e desarticulada do todo social é que tem gerado a concepção de planejamento incapaz de dinamizar e facilitar o trabalho didático. Consideramos, contudo, que numa perspectiva trasformadora, ou seja, o processo de planejamento visto sob uma perspectiva crítica de educação, passa a extrapolar a simple tarefa de se elaborar um documento contendo todos os componentes tecnicamente recomendáveis.

1. Planejamento: ação pedagógica essencial

A partir dos desacertos observados na atual prática pedagógica em nossas escolas, sentimos que o processo de planejamento do ensina precisa ser repensado. A visão negativa desse processo demonstrada pela grande maioria dos professores não pode ser considerada como uma situação irreversível. Entendemos que um planejamento dirigido para uma ação pedagógica crítica e transformadora possibilitará ao professor maior segurança para lidar com a relação educativa que ocorre na sala de aula e na escola como um todo. Nesse sentido, o “planejamento adequado”, bem como o seu resultado – “ o bom plano de ensino” – se traduzirá pela ação pedagógica direcionada de forma a se integrar dialeticamente no concreto do educando, buscando transformá-lo.

Numa perspectiva crítica da educação, a instituição escolar tem o significado de local de acesso ao saber sistematizado historicamente acumulado. De acordo com SAVIANI (1984, p. 9), a escola existe “para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber”. Os conteúdos que constituem esse saber elaborado não poderão ser considerados de forma estática e acabados, pois trata-se de conteúdos dinâmicos e, por isso, articulados dialeticamente com a realidade histórica. Nesses termos, precisam ser conduzidos de forma que, ao mesmo tempo em que transmitam a cultura acumulada, contribuam para a produção de novos conhecimentos.

Produzir conhecimentos nessa concepção tem o significado de processo de reflexão permanente sobre os conteúdos aprendidos, buscando analisá-los sob diferentes pontos de vista. Significa ainda desenvolver a atividade de curiosidade científica, de investigação da realidade, não aceitando como conhecimentos perfeitos e acabados os conteúdos transmitidos na escola.

Nessa concepção, a questão do planejamento do ensino não poderá ser compreendida de maneira mecânica, desvinculada das relações entre escola e realidade histórica. Em vista disso, os conteúdos a serem trabalhados através do currículo escolar precisarão estar estreitamente relacionados com a experiência de vida dos alunos. Essa relação, inclusive, mostra-se como condição necessária para que, ao mesmo tempo em que ocorra a transmissão de conhecimentos, proceda-se a as reelaboração com vistas à produção de novos conhecimentos. O resultado dessa relação dialética será a busca da aplicação dos conhecimentos aprendidos sobre a realidade no sentido de transformá-la.

Sob essa perspectiva, podemos concluir que a tarefa de planejar passa a existir como uma ação pedagógica essencial ao processo de ensino, superado sua concepção mecânica e burocrática no contexto do trabalho docente.

2. Planejamento do ensino: um processo integrador entre escola e contexto social

Consideramos que uma nova alternativa para um planejamento de ensino globalizante, que supere sua dimensão técnica, seria a ação resultante de um processo integrador entre escola e contexto social, efetivada de forma crítica e transformadora. Isso significa dizer que as atividades educativas seriam planejadas tendo como ponto de referência a problemática sócio-cultural, econômica e política do contexto onde a escola está inserida. O planejamento do ensino nessa perspectiva estaria voltado eminentemente para a transformação da sociedade de classes, no sentido de torná-la mais justa e igualitária.

Na prática, como se efetivaria essa forma de planejamento?

Nossa proposta tem como fundamento os princípios do planejamento participativo, forma de trabalho comunitário que se caracteriza pela integração de todos os setores da atividade humana, numa ação globalizante, com vistas à solução de problemas comuns1.

Essa forma de ação implica uma convivência de pessoas que discutem, decidem, executam e avaliam atividades propostas coletivamente. A partir dessa convivência, o processo educativo passa a desenvolver mais facilmente seu papel transformador, pois, à medida que discutem, as pessoas refletem, questionam, conscientizam-se de problemas coletivos e decidem-se por se engajar na luta pela melhoria de suas condições de vida.

No contexto escolar o planejamento participativo caracteriza-se pela busca da integração efetiva entre escola e realidade social, primando pelo inter-relacionamento entre teoria e prática. A participação de professores, alunos, especialistas, pais e demais pessoas envolvidas no processo educativo, seria o ponto de convergência das ações direcionadas para a produção do conhecimento, tendo como referencial a realidade histórica.

Para efeito de análise desse processo integrador, poderemos sistematizá-lo em fases ou etapas inter-relacionadas. A primeira será aquela onde se procederá ao estudo real da escola em suas relações com o contexto social em que se insere. O estudo em questão deverá ser desenvolvido de forma global, analisando-se os condicionantes sócio-culturais, e econômicos e políticos de diferentes níveis presentes nas relações escola-sociedade.

No bojo desse estudo será naturalmente configurado o universo sócio-cultural da clientela escolar, possibilitando assim a caracterização dos interesses e necessidades dos educandos para os quais a ação pedagógica estará sendo planejada. Nesse sentido, pesquisar os alunos objetivando identificar o que eles já conhecem, ao que aspiram e como vivem, será uma tarefa imprescindível.

Segundo SNYDERS (1974), os alunos possuem uma experiência que não poderá ser ignorada pela escola, experiência das situações de vida, das relações pessoais, bem como uma significativa multiplicidade de informações e conhecimentos, embora de forma fragmentada e dispersa. Portanto, a identificação dos temas ou problemas que se mostram mais importantes para os educandos constitui fator relevante na definição do material da realidade a ser estudado no decorrer do processo de ensino.

O resultado desse primeiro momento do planejamento seria um diagnóstico sincero da realidade concreta do aluno, elaborado de forma consciente e comprometida com seus interesses e necessidades. Concluído esse diagnóstico, o passo seguinte seria, a partir dele, proceder-se à organização do trabalho didático propriamente dito. Assim, a definição dos objetivos a serem perseguidos, a sistematização do conteúdo programático e a seleção dos procedimentos de ensino a serem utilizados, constituem as ações básicas dessa segunda etapa do planejamento.

Nessa fase é importante ter-se em vista que um processo de ensino transformador não poderá deixar-se conduzir por objetivos que explicitem somente a simples aquisição de conhecimentos. Na definição dos objetivos, portanto, será essencial a especificação dos diferentes níveis de aprendizagem a serem atingidos: a aquisição, a reelaboração dos conhecimentos aprendidos e a produção de novos conhecimentos.

É importante ressaltar ainda que, num processo educativo que se propõe transformador, os objetivos de ensino precisarão estar voltados eminentemente para a reelaboração e produção de conhecimentos. Para tanto, deverão expressar ações, tais como a reflexão crítica, a curiosidade científica, a investigação e a criatividade.

Os conteúdos a serem estudados, como já fazem parte do currículo escolar previamente estruturado, deverão passar por uma análise crítica com vistas à identificação daquilo que representa o essencial e o que representa o secundário a ser aprendido. Nesse caso, o critério básico para se efetivar essa distinção deverá ser a própria realidade concreta dos educandos, a partir da qual o saber sistematizado poderá ser selecionado com vistas a funcionar como instrumento de compreensão crítica da dinâmica dessa mesma realidade. A partir dessa definição, a organização do chamado conteúdo programático far-se-á considerando-se os objetivos propostos em termo de aquisição, reelaboração e produção de conhecimentos.

Conforme já referido anteriormente, o saber sistematizado, atual conteúdo dos currículos escolares, tem sido produzido longe da escola. A partir desse saber, que na nossa conjuntura educacional não poderá ser ignorado, deverão ser gerados novos conhecimentos a partir dos conteúdos impostos pelos currículos escolares, estariam de fato consolidando seu poder de contribuir para a transformação da sociedade.

Daí a importância de se ressaltar a relação intrínseca existente entre objetivos propostos e conteúdos a serem estudados. Em última instância, a organização dos conteúdos estará intimamente relacionada com o objetivo maior da educação escolar, que é propiciar a aquisição do saber sistematizado (ciência), tido como instrumento fundamental de libertação do homem (SAVIANI, 1984).

Tendo como ponto de referência os objetivos propostos e os conteúdos a serem estudados, passa-se à articulação dos procedimentos que deverão concretizá-los. Esses procedimentos deverão ser selecionados de forma a atenderem os diferentes níveis de aprendizagem desejados, bem como a natureza da matéria de ensino proposta.

Tendo em vista que a reelaboração e produção de conhecimentos serão os níveis desejáveis de aprendizagem, o critério básico para a seleção dos procedimentos de ensino será a criatividade. Assim, a tarefa do professor nesse momento será articular uma metodologia de ensino que se caracterize pela variedade de atividades estimuladoras da criatividade dos alunos. Nessa tarefa, inclusive, a participação dos educandos será bastante enriquecedora. Descobrir suas expectativas, saber por que estão na escola, qual seu projeto de vida, são questões que levarão ao entendimento do aluno, ajudando na compreensão de sua linguagem, de suas dificuldades, de seu nível de aspiração.

Complementando esse momento de organização da metodologia de ensino, o passo seguinte será a sistematização do processo de avaliação de aprendizagem.

A avaliação nessa concepção de planejamento não poderá ter o sentido de processo classificatório dos resultados do ensino. Num processo educativo onde a metodologia de ensino privilegia a criatividade dos alunos, a avaliação terá um caráter de acompanhamento desse processo, num julgamento conjunto de professores e alunos. Dessa forma, não deverá existir preocupação com a verificação da quantidade de conteúdos aprendidos, mas tão somente com a qualidade da reelaboração e produção de conhecimentos empreendida por cada aluno, a partir da matéria estudada.

Concluindo essa discussão, faz-se necessário enfatizar que a caracterização de momentos ou etapas no planejamento do ensino não deverá ser entendida como o desenvolvimento de partes distintas e estanques dentro desse processo, pois não é possível compartimentar-se uma ação que por sua própria natureza é contínua, dinâmica e globalizante. Assim como a educação pretendida através dessa ação, o planejamento deverá ser integrador em toda a sua extensão. Essa abordagem integradora, com efeito, é que proporcionará um ensino voltado para a formação de pessoas críticas, questionadoras e atuantes. Entendemos que uma educação integradora, onde professores e alunos produzam conhecimentos a partir da participação da escola na sociedade e vice-versa, estará formando efetivamente um educando com possibilidades de contribuir concretamente para a transformação da sociedade.

Tal perspectiva, contudo, exigirá uma postura docente que seja comprometida não só com o pedagógico, mas também com o social. Exigirá, pois, um compromisso do professor com uma educação política e não ideológica2. Nestes termos, um planejamento do ensino nos moldes aqui discutidos só poderá ser efetivado a partir de uma escola cujo engajamento com o contexto social seja, pelos menos pretendido. Para tanto, será imprescindível que nessa escola convivam pessoas comprometidas com essa postura política a fim de que um processo transformador possa ser desencadeado.

Um outro aspecto a ressaltar é que um planejamento participativo implica a eliminação da divisão do trabalho pedagógico existente na escola. Se o fundamento básico desse processo é a integração entre a escola e o contexto social, e seu objetivo maior é a educação do indivíduo para a vida social, a coparticipação apresenta-se como atitude norteadora de toda a ação pedagógica. Assim, não será possível a convivência de um discurso de participação com uma prática da divisão e da competição. Nesse sentido, não haverá lugar para a defesa de posições de grupos distintos, como, por exemplo, de professores de diferentes séries, disciplina ou cursos; de supervisores e orientadores; de diretores; de alunos. Na concepção participativa está implícita a relação educador-educando sob todos os aspectos cooperativa, pois existe uma totalidade a ser preservada e esta se explicita pela participação e não pela divisão.

Dessa forma, professores e especialistas não terão que agir de modo compartimentado. O trabalho pedagógico deverá estar voltado para o engajamento permanente de todos os elementos envolvidos no processo, cada um contribuindo dentro de suas potencialidades e limitações.

Em síntese, na efetivação dessa forma de planejamento é importante que ressaltem suas principais diretrizes: - a ação de planejar implica a participação ativa de todos os elementos envolvidos no processo de ensino; - deve priorizar a busca da unidade entre teoria e prática; o planejamento deve partir da realidade concreta (aluno, escola, contexto social...); - deve estar voltado para atingir o fim mais amplo da educação.

Em face do exposto, podemos concluir que a concepção de planejamento de ensino aqui esboçada justifica-se pelo simples fato de que, como a educação, a ação de planejar não pode ser encarada como uma atividade neutra. De outra parte, a opção do professor por um ensino crítico e transformador somente se concretizará através de uma sistemática de planejar seu trabalho de forma participativa e problematizadora, que ouse dar oportunidade para o aluno reelaborar os conteúdos do saber sistematizado, com vista à produção de novos conhecimentos.

Sob essa perspectiva, o planejamento do ensino deverá ser assumido pelo professor como uma ação pedagógica consciente e comprometida com a totalidade do processo educativo transformador, o qual, emergindo do social, a ele retorna uma ação dialética.

Notas

*Professora da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Mestre em Educação pela UNICAMP.

1 O planejamento participativo é parte integrante da metodologia da pesquisa participante, forma de trabalho característica dos movimentos de educação popular. Um maior aprofundamento desse tema poderá ser obtido através da vasta bibiografia existente sobre pesquisa participante. Quanto ao planejamento participativo aplicado à educação, a descrição de uma experiência nesse campo poderá ser analisada em Ilca VIANNA, Planejamento participativo na escola, EPU, 1986

2 O termo “ideológico” aqui tem o significado de “ocultamento da realidade”

Bibliografia

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CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

DEMO, Pedro. Elementos metodológicos da pesquisa participante. In: BRANDÃO, Carlos R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 104-130.

FERREIRA, Francisco W. Planejamento sim e não: um modo de agir num mundo em permanente mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

FREIRE, Paulo e SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

NIDELCOFF, Maria T. Uma escola para o povo, 17ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1983.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo, Cortez Editora/ Autores Associados, 1983.

. O ensino básico e o processo de democratização da sociedade brasileira. Revista da ANDE, nº 7, 1984, pp. 9-13.

SNYDERS, Georges. Pedagogia progressiva. Coimbra, Almedina, 1974.

VIANNA, Ilca O. de A. Planejamento participativo na escola: um desafio ao educador. São Paulo, EPU, 1986.

VÁSQUEZ, Adolfo S. Filosofia da Práxis. 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

Referência do livro

VEIGA, Ilma Passos de Alencastro (coord.). Repensando a didática. São Paulo: Papirus, 1996.

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